domingo, 19 de abril de 2015

PARA QUEM QUIS LIBERTAR AS ESTRELAS


    Meu amor me pediu provas de si. Não chovia nem era fim de tarde. Também não saíamos do cinema, pupilas dilatadas das canções que ouvíamos lá. Só domingo, travesseiro babado com cheiro de pizza e guaraná. Depois das vibrações do celular, a voz carente dizia sem dizer bom dia, boa tarde: “quero provas!”.
    Isso vinha na coesão do último sonho em que me perseguia um tamanduá gigante e sua língua gigante, adesivando outros insetos distraídos. Tendo conseguido camuflar-me entre espinhos secos do mandacaru putrefato, a fera introduzia com destreza sua língua por entre o labirinto espinhoso e se guiava pelo paladar que atribuía a mim. Sem sucesso, decidiu por bater as patas no chão e quem sabe o terremoto me fizesse bater em retirada. Foi assim que decidi de fato sair e me oferecer à sua fome, mas o chão ainda vibrava, então atendi sua ligação: “alô!” – “Quero provas!”.
    Fiquei sentindo, por um tempo, os rogos latentes de cada fonema. O chão ainda tremia e agora deveria ser do frio incoerente dessa tarde ou dos automóveis no asfalto em busca do fraterno lazer dos intervalos. Mas havia mesmo arrepios a impor que houvesse provas a se dar. Todos os amantes devem temer que, quando por palavras, se requer tais substâncias, há que se consubstanciar a linguagem, mas a prova mais viva que eu tinha era a que agora percorria concreta meu corpo, em meio ao frio, automóveis, celular, tamanduá e sua língua por entre espinhos. Todo amante também desconfia que se arrefece a fé de amor, quando se requisita pela segunda vez a fonte ou a consequência latente de um amor. E por ato contínuo, como a dizer que com mais palavras, e quanto mais palavras, enfraquecido fica a conjuminância de um sentimento. E do tom de ameaça imperioso, passou-se ao rogo: “você poderia me dar provas?”.
    É claro que me foi tentador isso de achar que o sadismo de incentivar a degradação verbal até que meu amor se convencesse de si pelo esvaziamento. Porém, logo compreendi, na confusão do entre-sono, que “na tortura, toda carne se trai” e, de mais a mais, eu é que tremia, agora arrependido da demora da palavra. Um lapso de pensamento me sugeriu argumentar, dizer que esse aparelho móvel não teria tecnologia suficiente para suportar qualquer prova de amor. Mas isso me pareceu também mordaz e patético, assim já nos ensinaram os românticos. E, os amantes sabem, viria depois o soluço, a fática expressão ininteligível: “ahn?”
    Não, não era divertido. Talvez fosse próximo ao gozo de coçar uma ferida. Pensei que meu amor não ignorava que todos, todos mesmo, somos parte do mesmo cosmo; coisa simples. Eu me alimento de carne, de frutas e outros sais. Que por sua vez alimentam-se de outros a quem provavelmente vou ainda alimentar. E não serão as mesmas águas que percorrem por fontes e rios e mares e corpos e estrelas e céus? E, quem sabe, já nos integramos tantas vezes em nossos corpos e em outros, e olha nós dois ali na saliva do tamanduá. Meu amor chorava, pelo menos era assim que me transmitia o telefone: “você não tem, né?”
    “Não...” - isso eu disse de pronto, apesar de incerto – “...estou entendendo...”. Meu amor retrucou, com palavras, muitas, que eu não entendia, mas amava; que na noite anterior também nos amamos, nos declaramos e eu lhe prometi as estrelas. Ora, que tolice, eu pensei. Se hoje amanheceu e hoje não seria se não tivesse amanhecido, haveria estrelas somente no instante - e houve estrelas, muitas, na noite dos amantes. Elas não seriam, certamente, provas, mas vis testemunhas. Talvez, para elas, nós é que testemunhávamos os amores interestelares. Na noite seguinte, oriundas do sono diurno, uma delas brilharia de linguagem cósmica, como se solicitasse, de uma outra, provas.
    Meu amor emudeceu e caiu a ligação. Mas é claro que já estávamos ligados, afora a ligação cósmica. Ligados pela palavra-terremoto e pela randômica e linguística seleção do caos. Eu, meu amor, e quem mais lê ou ouve essas palavras, já entendemos que essa tele-interlocução fora o que tecnologicamente é chamado de “engano”. Mas cabe-me agora interrogar a quem interessar possa ou a quem tenha também interincompreendido, sobre esse meu amor, se existe e se há o meu amor. Quero provas!