sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

É preciso se concentrar muito

                                                             A Jamesson Buarque (In memorian fictis hic et nunc)


Os grandes poemas ainda
Permanecem inéditos,
E as grandes palavras dormem
Nas línguas secas.
(Jorge de Lima)

Ter conseguido terminar de calçar os sapatos já foi um triunfo. De agora em diante vai ser fácil, porque abaixar a cabeça e ter uma tarefa aos pés nos impinge um senso de responsabilidade com o qual não é possível sobreviver numa situação como esta.
                   Molhar a cabeça com água fria também foi bom, dizem que água corrente corta feitiço. A do chuveiro é corrente. De manhã, os cabelos molhados, penteados tipo “lambidos de vaca”, causam boa impressão, inclusive em nós mesmos. Alguém com os cabelos molhados, sapatos bem calçados, andando depressa na manhã de segunda-feira em direção ao ponto de ônibus, deve ser um homem responsável, mesmo com os olhos vermelhos e lacrimejantes, camuflados por óculos de sol enormes.
Mas já não há sol e isso interfere na rapidez da caminhada. É preciso se concentrar muito, ainda que essa ressaca exija evitar concentração. É preciso executar atividades díspares, sem concatenar. Qualquer coesão construiria um pensamento estruturado e traria a “lombra” de volta. Portanto, nada muito profundo! Superfluidades! Ó, vede as nuvens escurecendo o céu e nele não há pássaros! Muito leve, leve no vôo do vento. Mas por que as nuvens seriam tão leves assim e, no entanto, dizemos que o dia está carregado? Haverá algo mais denso que o cúmulo no céu e eu sob ele agravando a escuridão com esses anteparos em meus olhos? O céu é escuro ou minhas retinas fatigaram? Vejo o que vejo ou sou visto pelo que tento ver? Onde está o que tento ver? Onde estão os poemas? Ah, os poemas, gritávamos juntos e ríamos. “Os poemas, caralho!”, e ríamos mais ainda, bebíamos e “Evoé, Baco, Curremos Cronus!”. “Comamos e bebamos, porque amanhã morreremos!”, eu nunca achei certo fumar o Novo Testamento dos Gideões Internacionais, pois a Bíblia são poemas, poemas, onde estariam os poemas? “Vamos fumar os poemas, divinos!” E ríamos e fumávamos e bebíamos: “os poemas, porra!, seu doido, está queimando os poemas! São as provas do seu livro, o Novíssimo Testamento, seu porra!”  E ríamos.
                   Porra!, queimamos os poemas ontem naquela loucura! Foi por isso que não entendi o chão preto se desmanchando hoje cedo, não era lombra meus pés puindo, eram as cinzas dos meus poemas que queimamos, meu amigo avisou muitas vezes, porra!, queimamos os malditos poemas, que... merda!, viajei demais, um pensamento leve, preciso de um pensamento leve, senão o peso me desequilibra! Leve, leve leve leve leveleveleve, e leve, eleve. Levantar; depois, quando conseguir levantar, volto para casa e imprimo de novo os poemas. Alguém, por certo, poderá me levantar daqui quando perceber que meus cabelos estão molhados e meus sapatos muito bem calçados. Alguém verá que sou responsável, assim, numa segunda-feira, deve parecer que sofro de labirintite e, por sorte, alguém não estará andando com tanta pressa assim para o ponto de ônibus e nem terá percebido que eu apontava para o céu e batia no peito e simulava um coito, uma orgia ou que bebia ou que fumava. Por sorte não estou aqui caído por mais de meia hora, então terei tempo de levar os poemas para a gráfica até o horário combinado. Por sorte o ônibus que passou me encharcando de água não é o que me levaria à gráfica, não, mas talvez seja, até porque é único que faz esse itinerário, aliás é o único que passa nesta rua sem asfalto. Por sorte, alguém não se importará de ajudar alguém encharcado, uma vítima de um motorista mal educado. Alguém não se importará em parar de correr debaixo dessa chuva e me ajudar a levantar, ainda que não seja somente lama o que mancha minha camisa, pois o banho de vinho deve estar agora camuflado sob o banho do chuveiro e, agora, sob o banho de lama e, não obstante a chuva, meus cabelos já estavam molhados quando saí de casa e certamente caí perto do ponto de ônibus por causa dos cadarços desamarrados e não pela tonteira, fosse da labirintite ou da orgia do vinho de ontem.
Quem sabe eu feche os olhos e alguém perceba a gravidade, talvez que eu tenha batido a cabeça. Mesmo um bêbado terá direito a socorro, caso tenha batido a cabeça, muito embora, aconselha-se não tocar em uma vítima que bateu a cabeça até aparecer o socorro especializado. Certo, mas sou vítima apenas de um (ou dois?) encharcamento de ônibus e não de ter batido a cabeça e, por certo, na pressa de segunda-feira, ninguém perceberia que estive bêbado e resolva me ajudar, afinal, se não são mais os passageiros apressados do primeiro ônibus, esses agora não teriam tanta pressa assim, nem mesmo estariam com os cabelos molhados. Quem sabe se eu fechar os olhos, por uns segundos apenas, quem sabe aquelas nuvens, quem sabe aquelas não tão negras nuvens, ou quem sabe o céu aberto, e um sol radiante!, ah, o sol radiante!, vai, a conduzir Apolo, e depois resgata-me dessas dores terrenas, ó, és máquina de sol! Das forças do sol e das forças da terra, supera meus grilhões e abre meus olhos, agora que meus óculos de sol tombam, meio que colados na terra pelo sangue, quem sabe esse sol ardente, já dissipado pela poeira que o último ônibus deixou, e agora de novo, não é mais um ônibus. “Graças a Deus que vocês chegaram!”,  “Vocês demoraram muito!”, “Chegar aqui é difícil, minha senhora!”, “O que foi com ele? Alguém viu?”, “Parece que bateu a cabeça, teve gente que falou que tava bêbado.”, “Que hora foi?”
Vou saber quanto tempo estou aqui, se dará tempo de voltar, imprimir os poemas, imprimir o Novíssimo Testamento, mesmo sem a revisão, porque não salvei de novo o arquivo e revisei diretamente nas provas. Certamente o editor não reclamará do atraso no dia em que ele entrará de férias. E só porque tenha aceitado o trabalho extra meio a contra gosto, só porque a incumbência tenha resultado do fato de ter chamado para si a responsabilidade, quando votara a favor de uma publicação de poemas – que seriam revistos – em conselho editorial que tradicionalmente aprova somente narrativas, tudo isso não o influenciaria numa indisposição de receber os poemas. Diria ser próprio da juventude comemorar em excesso; a qualidade da escrita valerá o esforço de adiar por um dia ou dois as férias do editor.
                   “Ih, moço, acho que faz muito tempo. Foi antes de eu abrir o bar, antes da chuva!”. “E ninguém tirou ele daí?” Finalmente me ajudarão a levantar. O enfermeiro vai perguntar meu nome e perguntar onde moro. Posso dizer a ele que não moro longe. Posso instruí-lo a ligar o computador, passo a senha para ele. Com a senha ele não vai se intimidar de abrir o arquivo do Office e imprimir os poemas. Poderá também ligar para a gráfica e localizar o editor; não de minha casa, pois a telefônica bloqueou minha linha. Não se negará a me ajudar, afinal estou bem penteado, ainda que meus cabelos tenham secado. Desconsiderará meus sapatos desamarrados. Geralmente eles não olham para os sapatos; às vezes até tiram os sapatos dos socorridos, os enfermeiros. O colega dele também se aproximará e, enquanto um deles me ajuda a levantar, o outro providenciará a execução das tarefas relativas aos poemas. Pego carona com eles, certamente. Certamente o hospital onde estão de plantão não fica longe da editora, foi por isso que demoraram a chegar aqui. Ficam um pouco em pé na minha frente, pararam de fazer perguntas. Devem estar hesitando sobre o ferimento em minha cabeça, é preciso planejar para fazer isso, pois as vértebras devem ser protegidas e terão de decidir qual dos dois ligará o computador, pois também não posso compartilhar a senha com os dois, mesmo que depois eu venha a mudá-la. Tenho que mudar a maldita senha, já que uso a mesma para a conta no banco. Não posso passar minha senha do banco para os dois enfermeiros parados em pé ao meu lado. Chamarão meu amigo, ou ele, de alguma forma aparecerá, notícia ruim se espalha rápido. Meu amigo sabe a senha do computador, embora não saiba que uso a mesma senha para o banco, mas ele sabe que no banco a conta está zerada, pois sacamos tudo no caixa eletrônico, ontem à noite. Meu amigo não se furtará a ajudar os enfermeiros a ligar o computador, imprimir os poemas do arquivo certo. Ele se lembrará, “Novíssimo poema.doc” e não “novissimo.doc”, tampouco “Novissimo testamento.doc”; é fácil. E falamos disso toda a noite. Li alguns poemas para ele. Lembrará das metáforas aguçadas  e de algumas hipérboles e assim saberá que não é “novissimo.doc”. Li poemas daí também, quando voltamos do banco, mas esses não têm metáforas tão aguçadas quanto aqueles, ainda que as hipérboles sejam equivalentes. Ele comentou os poemas. Falou muito: “Quer queimar, então deixa queimar essa porra!, só vim aqui porque tem vinho; nem de poesia eu gosto! Queima mais, queima esse aqui também, vai! Queima tudo!” E ríamos! Meu amigo tinha o sorriso dos mais bonitos que eu conhecia. Os dentes superiores e inferiores apareciam quase que por igual. E se não fosse a sutil curvatura da boca, não se saberia tratar-se de um sorriso ou uma cicatriz de corte. Era feito um felino quando mostra os dentes, nem querendo ser agressivo e nem querendo ser permissivo, só mostra que os tem – e que são muitos. Já estavam cinzas o seus dentes quando terminávamos a última garrafa de vinho; a que ele brincava batendo devagar em minha testa — “acabou o vinho, acabou o vinho!”, até que a última dose explodiu e ele lambia os cristais de borra em meu peito, mordia e era sangue na cabeça e no peito e nos cacos da garrafa e debaixo do chuveiro, e ríamos, e mais sangue e vinho nos pés que pisavam poemas, nas cinzas do Novíssimo Testamento, nas cinzas dos gideões internacionais e no cartão magnético onde minha senha estava escrita.
“Espero você em frente à editora. Não vai furar, hein?” Ele saiu quando a fumaça já tinha tomado conta da casa, considerando que espalhamos folhas de papel em todos os cômodos. “Entrego sua moto e o cartão quando a gente sair da editora e bem cedo. Tenho que ir embora, porque eu não durmo aqui nessa zona nem amarrado!” E deu aquele sorriso que só ele tem. A moto não tinha muita gasolina, não sei se meu amigo chegaria mesmo em casa, que dizia ser perto da editora. Empatamos nisso, porque eu também não tinha dinheiro para o ônibus, mas os passageiros não negariam a ajudar-me na passagem do ônibus. Diriam que eu sou rapaz digno; vê-se pelo cabelo penteado, demasiadamente compridos, mas comportados; e olhem os sapatos! Nem precisariam mais importar-se com isso, pois os enfermeiros me dariam carona, logo depois que, tendo localizado meu amigo, imprimissem os poemas. Isso, não importando se eles, de fato, não fossem enfermeiros, pois sei que enfermeiros não usam armas, ainda que devessem, de vez em quando. Sei que existem enfermeiros no corpo de bombeiros, mas bombeiros usam armas?
“Vamos recolher o meliante!”, “Muito bem, seu guarda. Esses maconheiros estão infernizando nosso bairro, é todo dia isso! Tinha outro com ele. Estava numa motocicleta que é desse aí”. Não consigo falar desse jeito, porque engasgo com sangue que desce da testa para o nariz e a boca. Isso deve ter começado quando a ponta do coturno de um deles atingiu o ferimento em minha testa. Precisava falar apenas a senha, mas eles não se preocuparam muito com a posição da minha cabeça. Agora estou feito aqueles balanços de galho de árvore, pois um deles me carrega pelos braços e outro pelos pés e minha cabeça pende, fazendo o sangue escorrer por um dos olhos, de maneira que só vejo o cinto de munições de um dos guardas. Ele aloja bem aquelas balas ali; para esse eu até poderia falar minha senha e não para o que vai atrás, pois acabou de deixar cair um dos meus sapatos e não fez cerimônia de voltar e recolhê-lo. O primeiro fez isso, embora não tenha sido delicado na maneira de jogá-lo em mim, agora que estou algemado no camburão. Daqui ainda deu para ver, depois que abaixou a poeira feita pelo ônibus, a minha moto e meu amigo em cima dela. Mas, que sorriso, que sorriso! Cuspo um pouco do sangue, olho as nuvens negras de novo, mas não são nuvens, porque elas sobem para o céu a partir do telhado de minha casa. “Nuvens negras incendeiam o lar dos Cronus / Um sorriso belo se vai de moto contínuo. / Arabescos”. Tento me concentrar; três, dois, um, zero, nove, oito, sete... preciso me concentrar; não, é: três, dois, um, zero... zero... nove, porra! Será a senha do editor ou o telefone do banco... ou do computador... ou a linha do ônibus? Mas o meu amigo vai entender, vai saber a senha quando conferi-la no meu cartão que está com ele, afinal, quando fomos ao caixa eletrônico, ontem, quando nos conhecemos, reparei que ele prestou muita atenção quando digitei a senha e saquei o dinheiro todo, exceto o da poupança. Portanto, ele já tinha se tornado meu amigo, quando deixei que ele ficasse com uma parte do dinheiro que sacamos daquele caixa eletrônico, deduzindo o dinheiro do vinho, preservativos e combustível. Sei que ainda tinha 50 reais. Escondi, pois poderia ser assaltado ontem e essa nota daria para uns vinhos mais e ainda sobraria um pouco para cópia dos poemas, a passagem dos dois ônibus até a editora, caso não pudesse ir de moto, ou se fosse, para subornar um guarda de viatura, pois geralmente a polícia parava a gente naquele percurso, e preferiam os motoqueiros sem habilitação. 
O motor da viatura ligou. Procuro esforçar-me e gritar a senha para o meu amigo. Mais fumaça! Já tinham me aconselhado a limpar o escapamento da minha moto, pois faz muita fumaça e muito barulho, mais do que o motor da viatura. O meu sapato, que, com o arranco, veio para à frente de meu nariz sangrento, não trazia mais a notinha de cinquenta. Ela deveria estar ali grudada por causa da cristalização do vinho, mas eu só via o charope vermelho no fundo, como um punhado de cera tendo aposta um carimbo de uma efígie de um herói pátrio e o número cinquenta. Bem pagos, os policiais poderiam me deixar gritar para o meu amigo, talvez: “a senha, meu amigo...dos poemas...porra!, a senha é duas vezes o número da linha do ônibus...mas qual!?” As mãos algemadas na cabeça querendo tirar os números dali; meus cabelos secos agora besutam-se do vermelho do meu sangue e meu vinho... Mas, na delegacia não me negarão um telefonema ao editor.