sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

É preciso se concentrar muito

                                                             A Jamesson Buarque (In memorian fictis hic et nunc)


Os grandes poemas ainda
Permanecem inéditos,
E as grandes palavras dormem
Nas línguas secas.
(Jorge de Lima)

Ter conseguido terminar de calçar os sapatos já foi um triunfo. De agora em diante vai ser fácil, porque abaixar a cabeça e ter uma tarefa aos pés nos impinge um senso de responsabilidade com o qual não é possível sobreviver numa situação como esta.
                   Molhar a cabeça com água fria também foi bom, dizem que água corrente corta feitiço. A do chuveiro é corrente. De manhã, os cabelos molhados, penteados tipo “lambidos de vaca”, causam boa impressão, inclusive em nós mesmos. Alguém com os cabelos molhados, sapatos bem calçados, andando depressa na manhã de segunda-feira em direção ao ponto de ônibus, deve ser um homem responsável, mesmo com os olhos vermelhos e lacrimejantes, camuflados por óculos de sol enormes.
Mas já não há sol e isso interfere na rapidez da caminhada. É preciso se concentrar muito, ainda que essa ressaca exija evitar concentração. É preciso executar atividades díspares, sem concatenar. Qualquer coesão construiria um pensamento estruturado e traria a “lombra” de volta. Portanto, nada muito profundo! Superfluidades! Ó, vede as nuvens escurecendo o céu e nele não há pássaros! Muito leve, leve no vôo do vento. Mas por que as nuvens seriam tão leves assim e, no entanto, dizemos que o dia está carregado? Haverá algo mais denso que o cúmulo no céu e eu sob ele agravando a escuridão com esses anteparos em meus olhos? O céu é escuro ou minhas retinas fatigaram? Vejo o que vejo ou sou visto pelo que tento ver? Onde está o que tento ver? Onde estão os poemas? Ah, os poemas, gritávamos juntos e ríamos. “Os poemas, caralho!”, e ríamos mais ainda, bebíamos e “Evoé, Baco, Curremos Cronus!”. “Comamos e bebamos, porque amanhã morreremos!”, eu nunca achei certo fumar o Novo Testamento dos Gideões Internacionais, pois a Bíblia são poemas, poemas, onde estariam os poemas? “Vamos fumar os poemas, divinos!” E ríamos e fumávamos e bebíamos: “os poemas, porra!, seu doido, está queimando os poemas! São as provas do seu livro, o Novíssimo Testamento, seu porra!”  E ríamos.
                   Porra!, queimamos os poemas ontem naquela loucura! Foi por isso que não entendi o chão preto se desmanchando hoje cedo, não era lombra meus pés puindo, eram as cinzas dos meus poemas que queimamos, meu amigo avisou muitas vezes, porra!, queimamos os malditos poemas, que... merda!, viajei demais, um pensamento leve, preciso de um pensamento leve, senão o peso me desequilibra! Leve, leve leve leve leveleveleve, e leve, eleve. Levantar; depois, quando conseguir levantar, volto para casa e imprimo de novo os poemas. Alguém, por certo, poderá me levantar daqui quando perceber que meus cabelos estão molhados e meus sapatos muito bem calçados. Alguém verá que sou responsável, assim, numa segunda-feira, deve parecer que sofro de labirintite e, por sorte, alguém não estará andando com tanta pressa assim para o ponto de ônibus e nem terá percebido que eu apontava para o céu e batia no peito e simulava um coito, uma orgia ou que bebia ou que fumava. Por sorte não estou aqui caído por mais de meia hora, então terei tempo de levar os poemas para a gráfica até o horário combinado. Por sorte o ônibus que passou me encharcando de água não é o que me levaria à gráfica, não, mas talvez seja, até porque é único que faz esse itinerário, aliás é o único que passa nesta rua sem asfalto. Por sorte, alguém não se importará de ajudar alguém encharcado, uma vítima de um motorista mal educado. Alguém não se importará em parar de correr debaixo dessa chuva e me ajudar a levantar, ainda que não seja somente lama o que mancha minha camisa, pois o banho de vinho deve estar agora camuflado sob o banho do chuveiro e, agora, sob o banho de lama e, não obstante a chuva, meus cabelos já estavam molhados quando saí de casa e certamente caí perto do ponto de ônibus por causa dos cadarços desamarrados e não pela tonteira, fosse da labirintite ou da orgia do vinho de ontem.
Quem sabe eu feche os olhos e alguém perceba a gravidade, talvez que eu tenha batido a cabeça. Mesmo um bêbado terá direito a socorro, caso tenha batido a cabeça, muito embora, aconselha-se não tocar em uma vítima que bateu a cabeça até aparecer o socorro especializado. Certo, mas sou vítima apenas de um (ou dois?) encharcamento de ônibus e não de ter batido a cabeça e, por certo, na pressa de segunda-feira, ninguém perceberia que estive bêbado e resolva me ajudar, afinal, se não são mais os passageiros apressados do primeiro ônibus, esses agora não teriam tanta pressa assim, nem mesmo estariam com os cabelos molhados. Quem sabe se eu fechar os olhos, por uns segundos apenas, quem sabe aquelas nuvens, quem sabe aquelas não tão negras nuvens, ou quem sabe o céu aberto, e um sol radiante!, ah, o sol radiante!, vai, a conduzir Apolo, e depois resgata-me dessas dores terrenas, ó, és máquina de sol! Das forças do sol e das forças da terra, supera meus grilhões e abre meus olhos, agora que meus óculos de sol tombam, meio que colados na terra pelo sangue, quem sabe esse sol ardente, já dissipado pela poeira que o último ônibus deixou, e agora de novo, não é mais um ônibus. “Graças a Deus que vocês chegaram!”,  “Vocês demoraram muito!”, “Chegar aqui é difícil, minha senhora!”, “O que foi com ele? Alguém viu?”, “Parece que bateu a cabeça, teve gente que falou que tava bêbado.”, “Que hora foi?”
Vou saber quanto tempo estou aqui, se dará tempo de voltar, imprimir os poemas, imprimir o Novíssimo Testamento, mesmo sem a revisão, porque não salvei de novo o arquivo e revisei diretamente nas provas. Certamente o editor não reclamará do atraso no dia em que ele entrará de férias. E só porque tenha aceitado o trabalho extra meio a contra gosto, só porque a incumbência tenha resultado do fato de ter chamado para si a responsabilidade, quando votara a favor de uma publicação de poemas – que seriam revistos – em conselho editorial que tradicionalmente aprova somente narrativas, tudo isso não o influenciaria numa indisposição de receber os poemas. Diria ser próprio da juventude comemorar em excesso; a qualidade da escrita valerá o esforço de adiar por um dia ou dois as férias do editor.
                   “Ih, moço, acho que faz muito tempo. Foi antes de eu abrir o bar, antes da chuva!”. “E ninguém tirou ele daí?” Finalmente me ajudarão a levantar. O enfermeiro vai perguntar meu nome e perguntar onde moro. Posso dizer a ele que não moro longe. Posso instruí-lo a ligar o computador, passo a senha para ele. Com a senha ele não vai se intimidar de abrir o arquivo do Office e imprimir os poemas. Poderá também ligar para a gráfica e localizar o editor; não de minha casa, pois a telefônica bloqueou minha linha. Não se negará a me ajudar, afinal estou bem penteado, ainda que meus cabelos tenham secado. Desconsiderará meus sapatos desamarrados. Geralmente eles não olham para os sapatos; às vezes até tiram os sapatos dos socorridos, os enfermeiros. O colega dele também se aproximará e, enquanto um deles me ajuda a levantar, o outro providenciará a execução das tarefas relativas aos poemas. Pego carona com eles, certamente. Certamente o hospital onde estão de plantão não fica longe da editora, foi por isso que demoraram a chegar aqui. Ficam um pouco em pé na minha frente, pararam de fazer perguntas. Devem estar hesitando sobre o ferimento em minha cabeça, é preciso planejar para fazer isso, pois as vértebras devem ser protegidas e terão de decidir qual dos dois ligará o computador, pois também não posso compartilhar a senha com os dois, mesmo que depois eu venha a mudá-la. Tenho que mudar a maldita senha, já que uso a mesma para a conta no banco. Não posso passar minha senha do banco para os dois enfermeiros parados em pé ao meu lado. Chamarão meu amigo, ou ele, de alguma forma aparecerá, notícia ruim se espalha rápido. Meu amigo sabe a senha do computador, embora não saiba que uso a mesma senha para o banco, mas ele sabe que no banco a conta está zerada, pois sacamos tudo no caixa eletrônico, ontem à noite. Meu amigo não se furtará a ajudar os enfermeiros a ligar o computador, imprimir os poemas do arquivo certo. Ele se lembrará, “Novíssimo poema.doc” e não “novissimo.doc”, tampouco “Novissimo testamento.doc”; é fácil. E falamos disso toda a noite. Li alguns poemas para ele. Lembrará das metáforas aguçadas  e de algumas hipérboles e assim saberá que não é “novissimo.doc”. Li poemas daí também, quando voltamos do banco, mas esses não têm metáforas tão aguçadas quanto aqueles, ainda que as hipérboles sejam equivalentes. Ele comentou os poemas. Falou muito: “Quer queimar, então deixa queimar essa porra!, só vim aqui porque tem vinho; nem de poesia eu gosto! Queima mais, queima esse aqui também, vai! Queima tudo!” E ríamos! Meu amigo tinha o sorriso dos mais bonitos que eu conhecia. Os dentes superiores e inferiores apareciam quase que por igual. E se não fosse a sutil curvatura da boca, não se saberia tratar-se de um sorriso ou uma cicatriz de corte. Era feito um felino quando mostra os dentes, nem querendo ser agressivo e nem querendo ser permissivo, só mostra que os tem – e que são muitos. Já estavam cinzas o seus dentes quando terminávamos a última garrafa de vinho; a que ele brincava batendo devagar em minha testa — “acabou o vinho, acabou o vinho!”, até que a última dose explodiu e ele lambia os cristais de borra em meu peito, mordia e era sangue na cabeça e no peito e nos cacos da garrafa e debaixo do chuveiro, e ríamos, e mais sangue e vinho nos pés que pisavam poemas, nas cinzas do Novíssimo Testamento, nas cinzas dos gideões internacionais e no cartão magnético onde minha senha estava escrita.
“Espero você em frente à editora. Não vai furar, hein?” Ele saiu quando a fumaça já tinha tomado conta da casa, considerando que espalhamos folhas de papel em todos os cômodos. “Entrego sua moto e o cartão quando a gente sair da editora e bem cedo. Tenho que ir embora, porque eu não durmo aqui nessa zona nem amarrado!” E deu aquele sorriso que só ele tem. A moto não tinha muita gasolina, não sei se meu amigo chegaria mesmo em casa, que dizia ser perto da editora. Empatamos nisso, porque eu também não tinha dinheiro para o ônibus, mas os passageiros não negariam a ajudar-me na passagem do ônibus. Diriam que eu sou rapaz digno; vê-se pelo cabelo penteado, demasiadamente compridos, mas comportados; e olhem os sapatos! Nem precisariam mais importar-se com isso, pois os enfermeiros me dariam carona, logo depois que, tendo localizado meu amigo, imprimissem os poemas. Isso, não importando se eles, de fato, não fossem enfermeiros, pois sei que enfermeiros não usam armas, ainda que devessem, de vez em quando. Sei que existem enfermeiros no corpo de bombeiros, mas bombeiros usam armas?
“Vamos recolher o meliante!”, “Muito bem, seu guarda. Esses maconheiros estão infernizando nosso bairro, é todo dia isso! Tinha outro com ele. Estava numa motocicleta que é desse aí”. Não consigo falar desse jeito, porque engasgo com sangue que desce da testa para o nariz e a boca. Isso deve ter começado quando a ponta do coturno de um deles atingiu o ferimento em minha testa. Precisava falar apenas a senha, mas eles não se preocuparam muito com a posição da minha cabeça. Agora estou feito aqueles balanços de galho de árvore, pois um deles me carrega pelos braços e outro pelos pés e minha cabeça pende, fazendo o sangue escorrer por um dos olhos, de maneira que só vejo o cinto de munições de um dos guardas. Ele aloja bem aquelas balas ali; para esse eu até poderia falar minha senha e não para o que vai atrás, pois acabou de deixar cair um dos meus sapatos e não fez cerimônia de voltar e recolhê-lo. O primeiro fez isso, embora não tenha sido delicado na maneira de jogá-lo em mim, agora que estou algemado no camburão. Daqui ainda deu para ver, depois que abaixou a poeira feita pelo ônibus, a minha moto e meu amigo em cima dela. Mas, que sorriso, que sorriso! Cuspo um pouco do sangue, olho as nuvens negras de novo, mas não são nuvens, porque elas sobem para o céu a partir do telhado de minha casa. “Nuvens negras incendeiam o lar dos Cronus / Um sorriso belo se vai de moto contínuo. / Arabescos”. Tento me concentrar; três, dois, um, zero, nove, oito, sete... preciso me concentrar; não, é: três, dois, um, zero... zero... nove, porra! Será a senha do editor ou o telefone do banco... ou do computador... ou a linha do ônibus? Mas o meu amigo vai entender, vai saber a senha quando conferi-la no meu cartão que está com ele, afinal, quando fomos ao caixa eletrônico, ontem, quando nos conhecemos, reparei que ele prestou muita atenção quando digitei a senha e saquei o dinheiro todo, exceto o da poupança. Portanto, ele já tinha se tornado meu amigo, quando deixei que ele ficasse com uma parte do dinheiro que sacamos daquele caixa eletrônico, deduzindo o dinheiro do vinho, preservativos e combustível. Sei que ainda tinha 50 reais. Escondi, pois poderia ser assaltado ontem e essa nota daria para uns vinhos mais e ainda sobraria um pouco para cópia dos poemas, a passagem dos dois ônibus até a editora, caso não pudesse ir de moto, ou se fosse, para subornar um guarda de viatura, pois geralmente a polícia parava a gente naquele percurso, e preferiam os motoqueiros sem habilitação. 
O motor da viatura ligou. Procuro esforçar-me e gritar a senha para o meu amigo. Mais fumaça! Já tinham me aconselhado a limpar o escapamento da minha moto, pois faz muita fumaça e muito barulho, mais do que o motor da viatura. O meu sapato, que, com o arranco, veio para à frente de meu nariz sangrento, não trazia mais a notinha de cinquenta. Ela deveria estar ali grudada por causa da cristalização do vinho, mas eu só via o charope vermelho no fundo, como um punhado de cera tendo aposta um carimbo de uma efígie de um herói pátrio e o número cinquenta. Bem pagos, os policiais poderiam me deixar gritar para o meu amigo, talvez: “a senha, meu amigo...dos poemas...porra!, a senha é duas vezes o número da linha do ônibus...mas qual!?” As mãos algemadas na cabeça querendo tirar os números dali; meus cabelos secos agora besutam-se do vermelho do meu sangue e meu vinho... Mas, na delegacia não me negarão um telefonema ao editor.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Olhos caídos

Ao Koda.

     Toda vez que sentia remorso, fumava. Daí, o sorriso vinha largo, enfrentava seus vícios com doçura até a embriaguez, cantava, dançava e se envolvia em sonhos. Era o retardo mental mais aconchegante. O ronco, após, trazia delírios de cachoeira em degelo.
     Mas, foi quando escasso o àlcool que seu itinerário de alívio o fez enredar. Via, da montanha, que seu pico era ilusão. Notou que pássaros o visitavam em solidariedade de vigília. Também árvores acompanhavam seus passos de transeunte em desvairio. Remoeu tanto aquela ideia e uma atordoante aura natural denunciou seu declínio. A surpresa revela ao homem percalços. Se sentiu possuído da dúvida, agora. O nada, abundante.
     Moveu-se de contrição e sua reverência o traíra.
     Isso prouve à humanidade em alento pelo personagem. E ao comprimir os lábios, lhe sobreveio enleio da continuidade. O próximo passo foi, então, negociar  sentidos ao seu corpo, até aí tinha sorvido a manhã e já não há mais a dizer dos entremeios.
     Foi na acelerada decida da montanha que deu com a caverna e, de lá, saía sorrindo um chinpanzé com copo rústico na mão. Precisou de gestos para anunciar ao ser compacto sua descoberta, mas a boa nova não continha apelo, por isso voltou à decida, em busca de outros interlocutores.
     Já a moça-menina, de flor na mão e fruto na boca, olhou-o com ternura. Seu desafio, porém, chegara atrasado, pois, apesar da solicitude, ela trazia o cenho cerrado como se interpelada por um invasor. Dessa vez, menos íngreme o percurso, a cabeça fitava a relva tão contida.
     Encontrou seres rasteiros e transparentes a tecer lares e alimentos, com fios invisíveis e letais armadilhas. Tirou as sandálias e o sol se convertia.
     A multidão de convivas estavam embaralhados na feira, mas o abjeto ver os quis enfileirados e em ordem de tamanho e cor. Cada qual se orientava pela nuca do outro e havia requinte de harmonia nos grupos que se posicionavam.
     Conferiu seus bolsos, o personagem, e sua riqueza o desonrava. Bruscamente saiu aos empurrões e gritava que ali não havia ouvidos para sua música. Houve protestos, houve xingamentos, houve ameaças. Mas houve pilhérias, alguns incitavam apedrejamento sumário.
     Foi, no entanto, o cego-cantor que advertiu a todos da velha profecia. Daí, houve silêncio. Desejaram que o personagem  lhes sentenciasse penitência. Houve pedidos, rogos, lamentos, exigências, protestos, xingamentos; houve ameaças e pilhéria, até que o apedrejamento começou.
     Um a um entregava ao cego pedra conforme tamanho e cor. O pobre deficiente cantava e atirava para o alto as pedras e, invariavelmente, de tamanho e cor, caíam em sua própria cabeça. Já o sangue escorria-lhe nas pernas e as pedras acabaram. O cego envolvia-se em sonhos e cantava e dançava - alguém lhe ofereceu àlcool e cigarro - o cego sorriu.
     Na alvorada, jazia sentado na praça da feira o novo cantor cego, personagem vindo dos subterrâneos; e passou a anunciar, dia a dia, a profecia da vinda do restaurador das visões àquele povoado caolho que habitava o pico da grande montanha.

sábado, 13 de agosto de 2011

Dos sonhos e das tartarugas que voam

É miúdo o vôo que vai lento
Tudo a expandir o infinito é presságio
Mimo a escuridão e o além vagueia
Houve nas nuvens viagens em vão e vem
Aonde os versos vãos?

São transeuntes os anjos-guias
Vejo seus desejos de horizontes
Tivessem asas nos olhos e desviariam do talvez
Na ambrosia degustam a carne de Mercúrio
Mas suas mensagens se esgotam na eternidade
Pra sempre é o nojo do fim.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

De como a beleza do ser é vasta tal um conto de clarice chamado Amor

                                                                                                       À beleza do ser

Isso foi quando ainda não via minhas alegrias transtornadas pelo sono eterno perturbado.
Ouvi o último grito do motorista avisando o destino de meu ônibus impaciente. O rapaz ao meu lado parecia expressar a ansiedade para chegar, tanto quanto o seu retorno. Nessa idade, somos todos felizes, pois o ronco do motor provoca no peito um distúrbio de energia capaz de também nos trazer lembranças. Ele murmurou algo como "o mais importante é o trajeto da longa caminhada e não o seu fim" e, claro, isso me suspeitou uma doçura como a de uma positividade juvenil, mas não era para mim que afirmava esse imprópério.
O brilho de seu olho me dizia outra coisa, dizia que há no universo harmonias infindas de seres e coisas grotescas, as quais compensam o infortúnio das angústias provocadas pela profundidade dos desejos. No entanto, para isso sorri. Minha senilidade teve um lance de esperança e as flores iam se abrindo na relva que circundava a rodoviária. Eram lírios volumosos destacando em meio ao verde mórbido. Os dentes do rapaz eram de brancura calma e eram somente isso: brancos.
Tão feliz em sua beleza que os fones em seus ouvidos é que pareciam vibrar com a música advinda de seu rosto. Eu já havia ouvidos narcisos em outras viagens, mas meu companheiro trazia sinais de uma tristeza tal que me comovia.  Pensei que seus lábios balbuciando a música de Soroco, sua mãe e sua filha, tateavam as pistas de deus para que os homens coletassem messes do Édem. Da boca saem a saliva que precede o alimento, as inconstâncias da palavra, mas, sobretudo, a infinda consubstância de um beijo, como diria Djavan.
Daí o motorista alertou sobre o cinto de segurança e proferiu a ironia de boa viagem. O vendedor de iguarias emergenciais não se abalou, mas no compasso de seus pés e a velocidade com a qual passava o troco para a velha do banco da frente, todo o aroma das frituras foi sugado pelo rapaz dos lábios, se é que lábios têm ereção.
Então, eu de olho no olho do outro de olho no olho de eu de olho outro no olho outro ou de olhos em molhos molhados de malhos que marulham no melhor do outro olho maior de um, em meio a mares melhores e meadas de aios oleosos olhados por mim.
Daí milhas seguiram-se sem nem mesmo palavra. o rapaz dormia na segadura dos verdes, sorvia em sono os avanços das rodas infinitas e paralelas. Que triste gozo de chegar! Como o demônio me vem em formas prosaicas! A coincidência de não haver paradas sob a aquiescência dos passageiros não me enganariam: a eternidade sempre entedia. O rapaz era o velho e era  bebê.
Agora o rapaz era eu e o demônio lograva sobre mim seu interesse de disputar cadáveres e almas laicas.
Cinco horas sem sequer outras oleosidades. O bilheteiro era a chave de minhas indecisões, sem embargo, pois até aqui nunca eu tinha chegado a terminais de longas viagens; constantes baldeações.
Eu não disse que era noite, mas quando ascenderam luzes internas, eu sentia cada bocejar rasgando a atmosfera tardia como o dever de trabalho no final do expediente. o bebê da primeira fileira já sentia a aproximação da próxima cidade, pois seu entretenimento de ver anjos já se dissipara e agora luzes além enchiam-me de lágrimas não-viscosas.
O rapaz sorriu.
E jamais sorriram assim todas as gerações. Eu, que sempre me assento junto à janela, compreendia a vivacidade do menino. Com prazer abriu a mochila, dela a carteira, dela o bilhete, em que apenso, grampeado seu flagrante mais decepcionante: o ticket de bagagem.
E num ínfimo recôndito de vida, eu acenei com a cabeça para ele, como a dizer que se cultivasse a vida, com certeza o amaria.
Ele compreendeu, pois seu hálito muito próximo, mediocrizava meu destino e, pela primeira vez em minha morte, houve o caos intolerado pela ordem.


terça-feira, 10 de maio de 2011

VISÕES DE TÚLIO

Só a suavidade das orquídeas compensam o desprezo do infinito
A lembrança percorre trincheiras de lutas desumanas
A falta...

Sempre há um justo a proferir impropérios
Os rastros de sorrisos ingênuos já passaram e fomos limo
Vento vem de noite e quero dor
Traz nos braços a pele de desgosto dos deuses
Querer é trazer pra si angústias
Semeando agonias - preferimos sorrir necessidades

O outono prenuncia desesperos
É pra se cantar que se criaram pirilampos
À noite, somos gêmeos de um novo par
A cada instante percorremos imensidões
Não nos tragam o tempo e a loucura
Por falta de loucos

Pra teu verso composto de rimas pobres
Um arquiteto imita seus fiéis
Mais insano de atirar pedras aos peixes
Caminham nossos guias pela segadura
Lâminas presas aos pés de versos cacofônicos
Iludimos nosso ego com o prazer impuro do vinho
E as danças...

Convivas disputam seus lugares
Preparam-se os nossos hóspedes rarefeitos
Uma tez que não se cora
Múmias se beijam com volúpia

DE COMO O SER VIROU TEMPO II

DE COMO O SER VIROU TEMPO II


                                                        *(Em parceria com meu irmão Marcius Petrúcio, Magister Luddi)

Parece até que eu jamais falei no amor
Parecer até que eu jamais amei
Criança é mesmo assim: bobagem, beleza,
Só fala maravilhas banais.
(Luiz Gonzaga Jr.)


Daí, tenho que confessar que não sou um ser consistente, dependo de um narrador que me antecede e este, por sua vez, deve depender de um escritor, o qual é uma das facetas de um ser humano, filho de Deus; Deus — criatura de todas as criaturas.
Nem por isso deixo de me fazer aqui e de descrever a história que me impressiona, porque acho que devo imprimir aqui a história de todos e de como o ser virou tempo, pela segunda vez.
Mas desta vez, quando passava, sob a chuva desta cidade, e matutava minhas várias histórias que algum dia ainda cantarei, dei com Aleph na ladeira da rua Quincas Borba:

— E você se diz um criador?

— Aleph, meu velho... há quanto tempo?

— E ainda me chamas velho, se sou uma criança? Sabe você do tempo?

Meu amigo sempre foi um desmedidor de palavras; que espírito!

— Apenas uma criança, ó Aleph.

— Somos todos criadores. — continuou — Muito além está o que nos desvenda, mas nem por isso deixamos de nos fazer deuses.

— Isso faz muito sentido...

— Não me interrompa! “Um certo infinito é ao mesmo – sob outro ponto de vista – algo estático.

Nós somos uma figura num quadro de uma casa
que tem uma figura de um
quadro numa casa que tem a figura de um
quadro numa casa que tem a figura de um
quadro numa casa que tem...

E, assim, pelo menos de certa forma, facilmente pensamos numa cadeia infinita de quadros e casas.
Mas, por outro lado, nós somos uma figura num quadro de [uma casa que tem uma figura (nós) num quadro de] uma casa... nós, nós, nós,...”

— Nó...

— Não avisarei de novo... se me interromper novamente...

— sei, sei, sei... desculpe.

— Umpf! “ Agora, com o pensamento voltado para o(s) comandantes(s) disso tudo, penso: ele está na quarta dimensão (ou eles estão). Mas quem está na quarta dimensão comanda quem está na terceira dimensão; dessa forma, somos Deuses do que é plano. O que é plano, por sua vez é Deus do que é linear. Este, por sua vez, é Deus do que é pontual. E, talvez finalmente, este é tão modesto e pontual que vive absolutamente de bem com sua modesta pontualidade, a ponto de só olhar para cima.
Quando comandamos alguma figura plana, vendo nela um infinito mundo, estamos exercendo nossa função superior. Um mundo tão vasto e infinito, e que vive em metamorfose, que muitos veem apenas a figura. Ponto.
Da mesma forma que estamos num quadro tridimensional tão grande (imagine a casa!) que planetas podem colidir e continuamos uma figura.
Agora, penso na igualdade “dimensional”. Tudo bem, estamos — neste ponto-de-vista — equidistribuídos e somos equi-especiais. Mas dentro desse nosso mundo — já mostramos que nós (nós que lemos, escrevemos e contamos) somos a nata (também tenho vontade de pensar na nata da nata da nata...)”.
Nesse momento eu olhava Aleph desenhar no ar, com o dedo indicador, uma imagem de um tubo de ensaio sendo agitado e com um líquido branco, ao final, inclinado. Eu poderia ver bem os níveis da nata sendo diferenciados até formarem um triângulo pontiagudo dentro do tubo de ensaio.
Mas o meu amigo, agora de olhos fechados, parecia absorto para que eu só visse os movimentos do dedo, e agora o dedo da outra mão, e não visse mais nem mesmo o tubo, nem o ensaio, nem a nata lá dentro; via apenas meu amigo como se ouvisse música (ele e eu), e como se a regesse. Até que uma autocensura me advertiu que, em pensando nisso, também ocorria uma interrupção na nossa história de Aleph. Foi quando ele voltou ao nosso mundo:

— “Pergunta: por que não consideramos algo entre o que é linear e o que é plano? Curva de Peano?

Da mesma forma, por que não consideramos algo entre o que é plano e a figura que somos? Entre nós e o que está na quarta dimensão? E assim por diante?
Quer dizer, de 0 dimensão para 1 dimensão? E de 1D pulamos para 2D e depois para o infinito 3D? E assim por diante?

Hipótese do Continuum?

Pergunta: o Teorema de Gödel é uma resposta?

Quer dizer, independente se sim ou não, não perdemos nossa consistência?”

Agora Aleph tinha parado de falar. Olhava-me como que me espicaçando. Seus olhos vasculhavam nos meus a resposta para suas perguntas. Mas não eram perguntas, pensei, era um emaranhado jogo matemático de espelhamentos. Ademais, tudo isso estava contido na história de meu velho amigo. Eu, seu mero ouvinte, havia ficado no nível mais fundamental, o mais pontual possível. Eu olhava divina e somente o que era somente uma história.

Quase tinha perdido a visão de que o rosto de Aleph começava a se untar de lágrimas, mas ele ainda me olhava. Eu dizia com meu silêncio: “Mas, Aleph, é uma história!” E já me arrependia de ter “não-dito”, isto é, de dizer em silêncio, de ao menos cogitar tal impropriedade.

Agora, juntamente a esta cena, meu amigo levantava as duas mãos na altura do peito e abria e fechava os dedos das mãos. E eram tantos dedos a reger inúmeras músicas em suas harmonias infinitas, afora a música das lágrimas semitonando a melodia no rosto, e a história ganhava, para mim, trilha sonora e fotografia, até eu me lembrar que seus personagens éramos nós.

Compreendendo minha modesta pontualidade, olhei para cima, agora, e pensei nos deuses dos intervalos. Aqueles entre mim e a próxima dimensão (semideuses?”). E, não me achei nenhum pouco consistente, nem independente. Na pequena chuva que nos caía ao rosto — a chuva me parecia o choro dos semideuses infinitos dos intervalos dimensionais; como pinceladas de tintas a pintar-nos a todos, num quadro sob um cavalete em casa de algum deles — via, em cada gota, o olhar choroso de Aleph, olhar cuja a história me perguntava: “não perdemos nossa consistência?”

Não perdemos nossa consistência? Não perdemos nossa consistência? Não perdemos nossa consistência? Não perdemos nossa consistência? Não perdemos nossa consistência???

Daí, eu não ouvia nem via mais o Aleph, nem via a rua Quincas Borba onde estava ouvindo nossa história, nem mesmo a história que nos continha eu via ou ouvia mais, até não ver a mim mesmo e cuido de calar até meu silêncio, pois, agora, eu estou vendo e ouvindo eu ser visto e ouvido.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Essa dor que eu sinto agora

Essa dor que eu sinto agora...

De quando tomo o assento que me cabe na condução

De quando a quadra e o lote orientam meu esquife

Sei lá o que dor é essa que sinto!


Com os olhos e os pés e o nariz e a boca

A única dor que sinto é que não sinto dor alguma

Minh'alma é que dói!


E nada disso me faz atentar em não seguir viagem

Na festa os convivas congregam sobre nós

Com vênias sisudas e lágrimas de velas

Com trajes em cujas cores lhes furtam

Essa dor que eu sinto agora.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Especulações acerca do verbo homem na palavra de Drummond

Que é isso, dura chaga, de quem fala pelos outros?
E se os homens fossem nuvens em tais versos repartidos?

Quem é páreo, quem é pária, quem é pura, quem pariu?
Quem é puto, quem ampara, quem amputa, quem prepara?

quem ouviu
a canção
que adormeçe
todo homem?
Isso é música
ou será
geo-grafia?

"Quem é essa mulher que canta sempre esse estribilho?"

A partir de agora esse aí que se ex-vai à cova é um homem.
De passagem, arvora e incita o ranger de ônibus e dentes.
Ecce homo - omnibus!
abunda - abunda!
Esse homem - homa!