terça-feira, 26 de agosto de 2014

De Narciso



Quando encontrar algo para beber, vou me sentar e retirar esse espinho. A estrada agora é meio íngreme e sinto que não prossigo se essa dor pontiaguda me vencer.  Já tive que conversar com o rapaz coxo logo ali atrás. Ele dizia que o companheiro de viagem é que encurta os caminhos, que a palavra extermina os percalços. Acredita que mesmo se os viajantes vão em mesmo itinerário é como se andassem pela metade, dividiriam a fadiga. Irônico o caminhante trilhar também suas teorias. É sua consciência que é vacilante, mas é pior ainda quando ele sorri. A esperança desse pobre evolui a cada tropeço, como a indicar que ambos não sabemos mesmo a direção, mas já entendi que sua paixão é seu vício, sua ferida na perna é o que faz mover seu corpo torto, e vão conformando seu rosto delicado em contrações involuntárias, mascarando as cicatrizes de tortura a que foi submetido. Porém suas lágrimas também não me interessariam.
Foi no meio da história das suas chagas que apertei meu passo sem olhar pra trás. Sua narrativa vinha com um percurso que daria na superação de um injustiçado. Uma estável ignorância no início, provocada por apontar de ferida presente e específica perto do calcanhar. Complicou-se com o despertar de amor por sua irmã, até a notícia do casamento dela com um homem mais velho e mais rico.  Daí, acumularam-se a chegada de outra mulher que o assediava, os dias de monotonia do relacionamento por conveniência, favor e pena, até alcançar o fundo do poço nas bebidas, nos espancamentos e no sexo animal. O rapaz levantou muito cedo - a mulher na cama, como morta – nu e descalço, enrolou-se no lençol ensanguentado, e com o facão afiado saiu de casa gritando o nome da irmã.
Pelo seu balbuciar, creio que nem tenha percebido meu deslocamento e talvez a história esteja perto do fim. Os contadores de histórias, tanto das suas quanto as de outro, deveriam saber que não se sorri o tempo todo durante seu contar. Há que se verter para a voz, para o corpo, para as expressões faciais, muito mais até que as emoções das personagens. É preciso interpretar o narrador que tudo sabe, e também o ouvinte. Mas nem assim eu queria ouvi-lo.
Ganho velocidade e acho que cada passo meu vale por cinco dele. Não fosse pelo espinho, eu estaria à boa distância sem nem rememorar esse encontro. Estranho também por ele não me rogar atenção, pois age como se eu lhe fosse paciente. Avisto um filete de água um pouco adiante, desacelero. Um reflexo solidário me faz olhar pra trás e o rapaz está de cócoras coçando as cicatrizes quase em carne crua. Agora: água. Lá atrás o moço continua abaixado, mas não mais sorri. Percebo que cada gesto meu de tomar água em concha e levar até a boca corresponde com os das mãos do rapaz encharcarem-se de sangue cavados pelas unhas e levá-las à boca. Então, mesmo saciado, repito seguidas vezes o ato, de forma que ele vai se devorando com pedaços cada vez maiores e me enjoo mais com o beber da água do que com o espetáculo insano atrás de mim.
Seu devorar já estava pelas coxas, quando interrompo a barbaridade e me levanto. Ele já não me consegue imitar, mas voltou a sorrir. Não olho mais aquilo. Cruzo a água, caminho, e esse espinho vai continuar ali.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Tal vez da verdade



Talvez a verdade seja
Uma invenção do sentido
Metáfora completa do nada denso
Uma inversão do sentido
Ironia da soma que diminui

Talvez a verdade seja
O antônimo mais perfeito da existência
E vamos acumulando o que não é verdade
Em busca de um transbordamento inconsútil
Assim como se limitasse com desejo
A verdade enseja no vislumbre de luz
No vir a ser ilimitado e placenta constante
Sugestão do quase e tentação do quando
Antimatéria se faz no aqui e a fora

Verdade talvez não seja
O que jamais será e o que terá sido
Na negação de estar sempre sendo

Assim
A verdade seja talvez
Assim
Imaculação concebida no estupro da voz
Ser
A palavra bendita que ao ser se maldiz
E ao ser
que se dizendo se desfaz nesse disfarce
Será
Como oração de fé engravidada

Assim
Seja a verdade talvez