sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Para Borges e Milton

Para Borges e Milton

O centro era mais embaixo, mas para a gente chegar lá ainda convinha subir uma pretensa ladeira que permite um atalho íngreme. Não era mesmo uma subida sequer. A gente tem o costume aqui de dizer “sobe por aqui” ou “desce aquela rua lá”. Nem era tão longe assim, as distâncias mais longas davam até mais perto da gente, por causa dos caminhos tortos; se a gente “sobe” por uma das paralelas acaba cruzando aquela de onde se partiu. É como se a cidade tivesse sido construída com base no seu mapa e não o contrário.
Talvez seja complicado, às vezes, andar, querendo chegar onde se planeja, contornando um certo obstáculo, mas não é, não. Quando perguntam desse embaraço, a gente diz que é porque vocês não sabem do lado horizontal; não precisa medo, não; não precisa da timidez; todo dia é dia de viver! A gente ouvia essa canção, desconfiada, meio torta, de olhar de beira, margeando o centro que estava lá embaixo, logo depois de subir aquela rua ali e descendo a outra, a gente estava lá.
Tem hora que o peito da gente dói um pouco, assim sem jeito; é que a gente não sabe o jeito mesmo que o peito deve doer. O ar que a gente respirava já não era mais o que a gente antes respirava mesmo. A gente não sabia que ar que era para gente respirar e então respirava o ar que tinha ali para gente respirar e o ar era aquele. A gente só sabia que não era para saber de muita coisa, ah isso a gente sabia bem, como essa gente.
Essa gente lá no cemitério também não devia saber muito. Mas quando souberam que não devia existir gente para caber em um caixão tão grande assim, cheio de camadas de chumbo e concreto, daí não acharam certo que o caixão ficasse ali, nem debaixo dos devidos sete palmos, mesmo que houvesse mais de sete palmos, sem contar a altura das camadas de chumbo e concreto.
E o que se saberá sobre a morte? Dela se sabe é que se morre mesmo, assim como se sabe que só se vive só. Meu compadre Finado Túlio, esse sabe que viver dói e não sei se é uma dor no peito como a que a gente sente quando respira esse ar que é para gente respirar. Sobre a dor, essa gente sabia que a morta que ali se enterrava ainda mataria mais, mesmo que não soubesse que o que mataria mais era aquele ar, que agora paira, que era agora para gente respirar. Aquela gente tinha subido uma paralela e achava que chegaria em outro lugar senão naquele de onde se partia e para onde a gente também ia, se era descendo ou subindo, meio torto, assim desconfiado, e beirando as camadas de chumbo, margeando o obstáculo de concreto ou contornando a dor do abstrato íngreme, afinal não caberia tanta abstração em caixão tão volumoso!
Mas não era tão íngreme assim, mesmo qualquer morte maligna ou benigna, como a de Ingmar Bergman jogando xadrez, barganhando com aquela estirpe de gente birrenta, pretensa no centro do umbigo da margem de baixo do mundo. A destreza que convinha, a fim driblar a morte concreta, era sugerir-lhe um atalho abstrato íngreme ao xeque-mate.
Seria uma boa saída, não fosse o concreto ali; um caixão grande e redundante mesmo, uma camada de chumbo e concreto a mais redundante mesmo, um peito da gente e mais aquela dor ardente mesmo, ante o ar que a gente tinha que respirar e que não era mais o mesmo.
A gente tenta imaginar como seria tão fria a dor de Túlio de não ter o direito de morrer. Ou a dessa morta das neves que, tendo, não tem onde ficar lady, porque não se pode deixar esse corpo por aí, porque esse corpo é o da gente, é corpo da gente, corpo de gente, em de gente, não é lixo!
A morte espanta a gente, porque deixa na gente o corpo, ainda que seja o corpo mesmo o que morre. Mas se a morte está no ar, então que mal a mais faria a essa gente enterrar esse corpo nesse cemitério, até porque não é o corpo morto só somente o que se quer enterrar. Vai com ele esse envoltório de chumbo e concreto e oxalá fosse também, abstrata, sua alma azul de lady da Prússia em pó espalhado no ar que a gente respira.
Como é longe a Prússia dessas terras da gente aqui! A gente poderia dizer que ela é depois daquela ladeira ali, descendo para o centro. Mas a Prússia é o paraíso íngreme que a gente perdeu, porque lá esse azul da alma da gente não mata ninguém e nem depois de morta a alma prossegue matando azul. Lá nenhuma gente nos nega a parte que cabe desse latifúndio. Ninguém de lá quer saber do que a gente não sabe aqui ou do que a gente deveria saber. Não sabem nem da gente sequer mesmo! Se me perguntassem de lá onde é daqui o centro, a gente não poderia dizer em concreto. A gente não poderia dizer – eu sei, vocês nem vão saberporque vocês não sabem do lixo ocidental; não precisa medo, não; não precisa da timidez; todo dia é dia de viver!
Os coveiros tímidos da Prússia, ou do lado de lá, talvez suspeitassem que houvesse algo de podre no reino da dinamarca, porque enterrar uma lady a certa medida abaixo do chão, assim como o centro era mais embaixo, talvez não fosse certo, talvez fosse complicado, mas não é não. Porque a lady de lá – ou do lado de lá – Lady não é como a da gente aqui. A uma basta decidir a medida dos palmos sendo sete, de cristão ou pagão; vai muito do coveiro ser ou não ser da mão. A das neves daqui da gente não bastariam tantos palmos e as palmas que envolveram a louvação abstrata, nos papéis podres de reino e poderes. Seu sangue azul não real, mas de lá da Prússia, careceria de camadas de chumbo e concreto e câmaras de seu ar expirado a mais de sete-vezes-sete palmos de areia, afora seu nome de Ofélia nos livros que aqui se escreveu de areia da gente ou da terra mesmo.
O livro de areia fechou o paraíso perdido, e lá daqui é distante mesmo assim: roses for Eleanor Rigby. É só jogar uma pá de terra sobre tudo isso torto e não precisa mais temer, porque vocês não verão meu mundo ocidental.
O concreto se faz aqui no que se vê a que se paga. Mas esse azul do ar da Prússia, que a gente não vê além do mapa construído para a gente ver além de lá, que a gente respira, que mata a gente depois que morre, a sete-vezes-sete palmos proibidos nessa parte que não cabe desse latifúndio, mesmo que sob camadas e camadas de areia e chumbo e concreto, mesmo sob as neves de seu nome que esvai no livro dos podres papéis de poderes do reino, e de seus bispos em suas torres, seus cavalos que montam peões, esses lances de azul íngreme em pó a pairar e subir ladeiras e atalhos convenientes, esse azul, mesmo, é que morto vê concreto a gente em pó, como quem sabe, como quem diz e faz: sou do ouro, eu sou vocês; sou do mundo de onde a gente já não era mais nem lixo. A gente era mesmo era essa gente, era do centro mais embaixo.